Crônica do José Alberto

José Alberto da Silva • 28 de agosto de 2020

Amparos e Defesas

Em 1960 meu pai chegou em casa com um livro que iríamos ler em família. Pela curiosidade dos filhos, não me lembro do jantar. Além dos livros escolares, não tínhamos livros infantis. Líamos o que meus pais liam, na época, notadamente, o jornal Correio do Povo. Falou-se de um ou outro assunto, de família, pagamentos do Estado, juros de agiotas, etc. Eu e meus irmãos lemos trechos do livro, o que fizemos mal entendendo seu significado. Minha autoritária irmã mais velha tomou o livro e saiu lendo. O que seria apenas um diário exótico era o marco da literatura brasileira chamado “Quarto de Despejo”, versão do que políticos intermediários fizeram na favela do Canindé, em São Paulo. A autora, Carolina Maria de Jesus, seria incensada no Exterior mais do que no Brasil, mas poetinhas eram festejados. Minha irmã leu versos com final assim:
- “... o Jânio esfola!”
Frequentados por pessoas que trocavam livros e informações, meu pai se informava. Eram injustiças, violência, fome, desespero, incêndios, suicídios, filhas e filhos que se “perdiam”; enchentes encharcando de esgoto e lama “vilas” inteiras; vícios, perseguições policiais, cadeião, enlouquecimentos de São Pedro, sanatórios. Com vacina e tudo, ecoava o “não posso respirar”, para a máscara da tuberculose. Meio à sangria, políticos intermediários enfileiravam pedintes do Estado ao abrigo de menores, Casa do Grande Jornaleiro, Fundação de Bem Estar do Maior, Pão dos Ricos, Legião de Desassistência. Mudam de nome para negar seu passado. Os negros é que não faziam o que lhes caberia para merecerem amparos e defesas do Estado. Era um desperdício de talentos os esforços que faziam para sobreviver, mal informados para avaliar a gravidade do que viviam. Sofrimento amenizado pelo carnaval e pelos terreiros de batuque, com seus tambores afinados sem estalidos e cantos à meia voz para não perturbarem a ordem pública. Cassetetes encorajados por pólvora dissolvida em cachaça não tinham pejo de ofender orixás desarvorados. O avanço no horário provocava sonolência em meus olhos e ouvidos. Acordava, retomava o ouvido, estonteava novamente e assim sucessivamente. Sono bom quando o adolescente dormia no ombro de seu pai.
Minha mãe oferecia café para os que não a seguissem na cerveja. Eram o Alberto Martimiano, o Borel, Benedito, o alfaiate, o João Rocha, do sindicado da estiva, o professor José Maria, o Pedro Cunha, o Délcio Braz, o Pompílio dos Santos, o Hemetério Barros, os primos Soares de Lima, como o Alceu, o Leopoldo, o Boliva e o Cubinha, o Curbiniano, o Ernani Machado, o Walmor Rosa, o Adelino Francisco da Silva e outros do Bloco Aí Vem a Marinha. Vinham de áreas alagadas do Areal da Baronesa, Santana, restos da Colônia Africana. Algum colega de serviço ou da vizinhança era branco. Por meu pai devíamos aproveitar a riqueza da convivência com outras raças para não pegarmos atavismos de nenhuma. Assim, tinha um compadre e amigo chamado Frederico Tschechotzky. Minha mãe trocava bolachões de Elizeth Cardoso ou Silvio Caldas. Também oprimidos, esses brancos constrangiam meu pai ao elogiarem sua conduta de negro com “alma branca”. Meu pai, mordaz, balbuciava que ninguém tem cores na alma. O tempo devia ter nos ensinado não haver correspondência nas cores pele/alma.

"Passo à frente eram as mulheres dissertando sobre temas de 1960, 
denunciados por Carolina Maria de Jesus. Como no passado, 
se planejava o benefício dos oprimidos, explorados por políticos
 intermediários vendendo deveres do Estado"

Em idade provecta, idades que levam velhos a dormitar em sessão de cinema e a fazer xixi a cada meia hora, eu zaranzava nos entornos do Mercado Público e ouvi de reunião de uma Frente Negra Gaúcha. Era 2019. Pela representatividade negra nos espaços de poder. Negros cultos discutiam formas de dignificar a base da pirâmide social. Lá estavam o Evandoir dos Santos, o professor Airton Xavante, a Rosi Canabarro, o Antônio Eduardo Maestro, o João Carlos Santos, o Érico Leoti, o Silvio Garcia, o Silmar Lopes da Silva, o Airton Araujo Machado. Como consequência a esta proposição, se demonstrava matematicamente a emersão da sociedade brasileira dividida em mundos paralelos para se constituir numa nação. Entre cochiladas eu avaliava a qualificação daqueles quadros. Foram chegando o Edilson Nabarro, a Eliane Gonçalves, a Maria Cristina, o Lídio Santos, o Luis Lessa, o Lucas Roxo, a Vanessa Mulet, a Silvia Abreu, o Kleber Rocha, o Fabiano Negreiros, o Siboney, o “Seu” Vanderlan, o Roberto Schultz, o José Guarassu Barbosa, o Jaime Nuncia, o Luis Carlos dos Santos, entre outros e outras. Aprendi sobre consciência racial até com os brancos livres de amarras. Dormia e retomava atenções para ver a chegada de outros. Aquele sono seria bom se eu pudesse relaxar.
Na década de 60, discriminados, os negros frequentavam seus clubes e blocos carnavalescos. Crescia a divisão entre os melhor aquinhoados, cindindo esperanças de linguagem comum em nossas tribos. A necessidade de postura única, antes pela discriminação, seria exigida pela concorrência ao violentar nossa negritude. Para a grande classe absenteísta, que ganhou terras da Coroa antes desta ser defenestrada do trono laudêmio pelos civilizados de então, ou para a elite multi, é indiferente se na caixa registradora de uma Rede de Supermercados explora-se um macaco branco ou preto. O racismo varejista vem dos brancos ou dos que pensam que são brancos, como disse o Chico Buarque, pressionados à condição do negro. Prontos para a guerra civil, sequelados da sutil doença a que estamos sujeitos. São lideranças no movimento supremacista ariano; eleitores do que haja de pior no pastoreio político partidário dos intermediários.
Como me acontecia na juventude, quando mal acompanhava a conversa de meu pai com amigos, agora, pouco eu entendia do que se discutia. O rosário de dor era o mesmo. Quarta geração de homens livres, quarta reinfecção do vírus genocida para que negros deixem de ser maioria no “apartheid” do Brasil. O sofrimento se ameniza por livros. Não se discutem opiniões, mas informações e ferramentas para se abordar a massa negra que desacredita em escolaridade, em política, em partidos. Entre uma e outra cochilada eu parecia estar em reunião continuada. Quanto maior o esforço para manter despertos meus olhos vazados, mais tinha impressão de um mágico entressonho.
Passo à frente eram as mulheres dissertando sobre temas de 1960, denunciados por Carolina Maria de Jesus. Como no passado, se planejava o benefício dos oprimidos, explorados por políticos intermediários vendendo deveres do Estado. O borralho social ainda não faz a parte que lhe cabe para “merecer” amparos e defesas da desigualdade. O desafio é buscar habilidade para cooptar este povaréu para a unificação de propósitos políticos e sociais pelo voto. A sociedade perde em qualidade de vida, reduzida à condição do escravo em senzalas que mudam de nome para negarem o passado.
Cada um que tomasse a palavra naquela reunião interminável da FNG era transportado colorido para o meio daqueles homens reunidos em preto e branco na memória do meu pai. Era como se aqueles falecidos reencarnassem ali para dizerem das mesmas queixas, do racismo pagão e institucionalizado por criminosas políticas públicas que lhes desperdiça valores. O resto, negros e brancos, fazem com as mãos. O diferencial está em dispensar os serviços dos vendilhões intermediários e levar às esferas de poder os candidatos saídos dessas comunidades alagadas. Eu estava muito incomodado, com sono. Como quem sente a dor fantasma por uma amputação, naquele momento senti falta de um membro da família, o ombro do meu pai. Num supetão, saí port’afora sem que ninguém se importasse.
 
* José Alberto Silva é integrante da Frente Negra Gaúcha e militante do movimento negro. Escreve com regularidade e publica suas crônicas periodicamente nos canais de comunicação da FNG.
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