Crônica do José Alberto

Frente Negra • 8 de dezembro de 2020

Os cada quais

José Alberto Silva*

Meu primo Floripa veio a Porto Alegre negociar seu produto industrializado. Sugeriu café ajantarado num shopping. Depois de passeios no Mercado Público, o encontrei com a tranquilidade do parentesco, sem temas novos para tratar, por conhecerem limites, e sem tratar nuances um do outro. Na praça de alimentação olhamos cardápios com o desinteresse dos velhos fazendo piadas sobre o que comemos em casa.

 - A Fulanita ainda te obriga a comer cebolas?

 - E a tua ainda te obriga a jantar quatro da tarde?

Circulava ali, menino maltrapilho, tipo 12 anos, que falou num misto de abençoanças e súplicas. Esgueirou-se entre mesas sem esperar nossa reação.

- Junta mais dois desses e temos um delito – disse meu primo Floripa num ranço de condenação genérica.

- Desperdício de energia, mas se oferecemos uma chance, um livro, eles fazem melhor que nossos filhos.

A extensa comunidade negra que deu um “povo” a este País, sem linguagem comum aos males sofridos abriga diversidade de antagonismos e mal entendidos. A elite saqueadora, que ganhou terras financiadas e nunca pagas e a dispendiosa graduação universitária para poucos, reclamou indenização pela libertação da mão de obra escravizada; derrubou a monarquia, que assim plantou nossa desigualdade definitiva, e por rancor internalizou o ódio na vítima para que se autodestruísse. Cada um deveria ser melhor que seus iguais. Meu primo deu de ombros, vez que discordamos dessa visão básica.

- Não perca tempo com essa gente! – disse ele, peremptório – gente sem ouvido e autorrespeito; querem cotas e sofrem racismo até do clima; não fazem por merecer; não aceito vitimismo, racismo reverso ou mimimi! Fiz por merecer como industrial e criar filhos sem complexo de inferioridade. Todos devem trabalhar pelo pão; na escravidão, tínhamos casa e comida e hoje morremos por estas coisas.

Meu primo se envergonhava como se sentisse culpa deste tema de recorrência mundial. Constrangedor e truncado, apesar de seu bom nível. Era-lhe mais fácil atacar os seus desprovidos de poder do que afrontar o poder de seus algozes. Por gerações de 400 anos assim o País foi amestrado. Ele entendia que nossa estrutura social fora estabelecida por Deus desde que o mundo é mundo como a grandeza dos planetas e a música das esferas, ou como se nossa história tivesse começado ontem. A ameaça da China de Mao será inspirar e exportar o zeramento das condições de vida da maioria para uma nova corrida social.

Perdi a sensibilidade e até a compaixão para uma cruel sacudida.

- Sabes o Fulano de Tal, o alemão? Sabes o Beltrano de Tal, o italiano? Pois é! Tu deverias disputar com eles no talento, cabeça com cabeça, a glória que eles detêm, mas tu fabricas um tratamento capilar chamado ÁGUA DA PENA.

O burburinho da Praça de Alimentação não abafou o retumbar da maionese mal combinada com a gordura da batata frita ao caírem nos porões fedidos daquela relação. Em nossa última conversa tensa ele insistira em promover meu ingresso na Ordem Maçônica. Depois de ouvi-lo sobre a doutrina, elaborada e sutil como a Católica, sabendo que ambas abrem mão da opção libertadora pelo “todos”, perguntei se ele acreditava nisto tudo. Eu conjecturei se ali alguns não praticam a Maçonaria ideal cheia de virtudes, como nos órgãos de segurança pública, para inglês ver, enquanto outros fazem a conveniência cristã?

Para imitar a sequência da Argentina que matou índios, negros e, por fim, os nacionais em guerra contra os ingleses, nosso Patrono inspira pobres, pretos e drogados para lutar contra os States.

Eu acalmava meu impulso de esbofetear aquele negro em plena Praça de Alimentação, enquanto ele repassava o que chama de necessária autocrítica da negrada:

- O negro sacode o rabo no samba, no rock, o reggae, no tango! Colégio, não mesmo! A mulher negra é vista como prostituta; a polícia mata porque não respeitam nada; o veado negro aparece mais que poste pintado; o negro são de lombo quer viver do Estado, enquanto gente aleijada estuda e trabalha. Praticam o batuque, mas não dizem onde estavam nossos santos e protetores por 400 anos de suposto sofrimento.

- Só a covardia nos derruba – respondi - à menor chance, realizamos o impossível creditado aos “heróis emoldurados”, que negam tudo isto. O samba, única expressão cultural brasileira, é música de religião com letra profana, pois informa e ensina, como disse Carlos Cachaça, compositor da Mangueira. Ali, sempre estiveram os santos e protetores da identitária do negro essencial.

- De uma vez por todas, meu primo, escute a civilização! – supliquei – A civilização fala de uma melhor consciência social. 

O Pau Brasil mantém a enganação, crueldade aos inferiorizados, subserviência a glórias europeias baseadas no saque da América Latina, da Ásia e da África, até a Inglaterra fazer uma guerra pelo direito de viciar em drogas os povos asiáticos. Um parafuso sequer foi criado pela elite bestial que “berra e marra”. Cansado da promessa de democracia racial, o negro preto aguardou em “seu lugar” até gritar que sente dor. Beneficiário conivente, o negro branco se assusta ao perceber os males da desigualdade; em sua defesa, como escravo mental, recrudesce crimes raciais, repete discurso do colonizador e discrimina, marca inalienável do Brasil no mundo, expõe seu mal mas não quer que se perceba seu fedor, quer favores mas não agradecer ou pagar por eles. Entre si, o homem branco aceita, por suposta disciplina, a hierarquização das pessoas como natural e facilmente julga semelhantes como inferiores; a discriminação racial, portanto, não é vista como mal praticado. Um diploma ou casamento interracial faz com que alguém assuma este caráter discriminatório, não aceitando disputar a dignidade com inferiores. Em 520 anos não temos 50 de democracia intercalada por intervenções divinas. Sem reformas, preparamos guerra civil destrutiva. Quanta maldição, quanta energia negativa ainda brota desse chão como vírus, bactérias e canhões ou como inço, nosso alimento de amanhã! Dor para todos, ranger de dentes. Esperemos para ver o final disto incendiado por Satã.

Quando a humanidade tornou-se autodestrutiva para esta sucessão de penúrias? Ele desconsidera as novas façanhas da covardia gaúcha inauguradas antes de Porongos. Bem que nem todos querem vandalizar. O branco consciente quer acertar ponteiros com as desigualdades e não tenho o concurso de meu parente, industrial, fabricante da ÁGUA DA PENA, tratamento capilar universal. Se um extraterrestre mexeu no código genético da humanidade para transformar répteis em humanos, esse Deus mexeu apenas em um tipo, deixando outros na antiga condição de bicho; bichos que se lambuzam na gosma humana e que, na distração daqueles, elegem lideranças bestiais que nos governam.

 - Sabes o que admiro nessa raça? – perguntei e respondi - é que apesar da opressão, a afirmação negra é sobreviver ao açoite, conseguimos cantar e dançar, estudar e realizar ciência, artes e ofícios.

Para justificar meu carinho, o Floripa falou num assomo de lucidez:

 - A hegemonia é branca, favorece a realização dos brancos pela reserva de mercado; então, se estou na mesma situação social de meus amigos brancos remediados, os fracassados são eles! – Seus olhos fixaram em mim um brilho que logo se dissipou como se ele quisesse esconder uma arma proibida de usar. Tal brilho detém a identitária do negro essencial.

Ainda bem que ideias salvadoras podem reverter pacificamente destinação de dor a toda gente. A ideia de globalização pode nos levar a adoção de posturas mundiais justas para a maioria. Contrários serão silenciados pelo clamor das vaias. Temos tempo para reverter nossos males, secar lágrimas, saciar a fome dos desesperançados representados neste teatro de hospício. Entendimento diverso, portanto, deve aprimorar a todos.

O negrinho ainda circulava entre as mesas da Praça de Alimentação. Eu e o Floripa olhamos pra ele ao mesmo tempo e fizemos silêncio até nossa despedida. Admitindo que eu pudesse estar certo, por amor de mim e perdendo seu medo de mudar, meu primo fez um último comentário:

- Pois então - que o sistema não dê um livro a ele.
 
*José Alberto Silva é integrante da Frente Negra Gaúcha e militante do movimento negro. Escreve com regularidade e publica suas crônicas mensalmente nos canais de comunicação da FNG.

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